Filme Vidro

É chegada a hora de conferir o desfecho de uma trilogia que permaneceu em gestação por quase vinte anos, idealizada por M. Night Shyamalan para discutir o mito do herói e a cultura de quadrinhos. Considerando o histórico de altos e baixos do diretor e as muitas mudanças que a cultura de super-heróis sofreu nas últimas duas décadas, é compreensível que Vidro (Glass, 2019) cause ao mesmo tempo ansiedade e receio. Contudo, com um trio extremamente talentoso de atores voltando a papéis marcantes de suas carreiras, será que Vidro realmente poderia dar errado? Poderia, já que se o filme não falha em sua missão de misturar de forma definitiva as personagens icônicas, o resultado final fica muito abaixo dos longas anteriores. Isso significa que, embora Vidro não seja necessariamente ruim, está fadado a decepcionar muita gente.
A maldição do terceiro filme
Já podemos considerar praticamente uma regra do cinema de super-heróis: o terceiro filme de uma trilogia sempre será o menos interessante. Aconteceu com o Homem-Aranha de Sam Raimi, o Batman de Nolan, o Superman com Christopher Reeve… Vidro, nesse aspecto, segue bem a tradição. E não poderia ser muito diferente. Corpo Fechado(Unbreakable, 2000) ofereceu uma visão única do universo de super-heróis muito antes da explosão de filmes da Marvel; já Fragmentado (Split, 2017 — resenha aqui) cria a única estória de origem de um super-vilão que o cinema já fez, e nem mesmo revela suas intenções até a última cena do filme. Era de se esperar que Vidro não fosse capaz de surpreender tanto quanto os filmes anteriores, com o objetivo principal de servir de elo, capaz de ligar duas pontas de uma mesma narrativa e colocar herói e vilão face a face. É assim que, embora seja a parte mais fraca da trilogia de Shyamalan, Vidro cumpre como pode sua proposta, oferecendo ao menos uma perspectiva diferente para filmes de heróis, em uma indústria supersaturada por efeitos digitais e combates em uma escala cada vez mais fantasiosa.
Parte do fascínio que Corpo Fechado é capaz de oferecer até hoje deriva de sua abordagem pé-no-chão do mito do herói. David Dunn (Bruce Willis), sobrevive a um acidente de trem que deveria ser fatal, o que o leva ao encontro de Elijah Price (Samuel L. Jackson) e à uma jornada onde irá descobrir aos poucos seus poderes. O argumento do filme, de que existem super-humanos entre nós, é muito mais crível do que qualquer outro filme de heróis pois os poderes exagerados dos quadrinhos surgem em uma versão menor, sutil e perfeitamente crível. A superforça de Dunn não o leva a levantar toneladas, mas é fácil para ele dobrar aço; ao invés de uma infra-visão, Dunn conta apenas com uma intuição nata aprimorada; embora não seja imortal, Dunn também é imune a doenças. Fragmentado foi ainda além nesse argumento, dando a James McAvoy o controle de dezenas de personalidades diferentes dentro de um mesmo corpo, algumas das quais acreditam na existência de uma personalidade definitiva, capaz de alterar a estrutura física do hospedeiro de tal forma que sua pele se torna até mesmo resistente a balas.
Vidro, um título que faz referência à alcunha de Elijah Price, pretende mostrar como o homem dos ossos de vidro também possui suas próprias capacidades sobre-humanas, na forma de um superintelecto. Ao mesmo tempo, coloca rapidamente as três curiosas personagens como pacientes de um sanatório sob os cuidados da Doutora Ellie Staple (Sarah Paulson), uma psiquiatra que tenta provar que super-humanos não existem, e a crença dos três em suas próprias habilidades não passa de um tipo específico de megalomania. Em tempos de banalização dos heróis, a proposta de discutir como essa cultura pode influenciar patologias é, no mínimo, curiosa. O efeito, no entanto, é minimizado pelos dois filmes anteriores da trilogia, ambos garantindo a existência de poderes e impedindo que o espectador de Vidro fique realmente em dúvida sobre a possível loucura de heróis e vilões.

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.